reportagem especial

Arte, esporte e resistência que vêm das ruas


Desdobrada em arte, esporte, dança, música e difusão de saberes, a cultura de rua ganha representações diversas no espaço urbano, seja em uma rima, um traço, uma manobra, um estilo.

 Em Santa Maria, as expressões gritam de alguns muros do Centro, mas muito mais de outros bairros, das esquinas, das quebradas e dos diversos encontros em praças, escolas e quadras esportivas. Conforme os representantes dessa cena cultural, o reconhecimento ainda é caro, e o entendimento esbarra em dilemas morais.

- Somos os poetas das ruas, os pintores das ruas e os atletas das ruas - define o artista plástico Polin Moreira, 30 anos.

Muitos dos amantes da cultura de rua defendem, pois, que trata-se, em sua origem, de uma cultura periférica, subversiva, mas sempre presente e resistente, que tem no movimento hip hop o conjunto de suas significações.

Surgido na década de 1970, o hip hop emerge entre os latinos-americanos, jamaicanos e os afro-americanos na cidade de Nova York, mais precisamente, no sul do Bronx. O Disc-Jockey Afrika Bambaataa é considerado pioneiro e criador desse movimento social e, em 12 de novembro de 1973, fundou a Zulu Nation, uma organização com objetivos de autoafirmação e que invocava paz, união e diversão. Os quatro elementos são definidos por Bambaataa como MCing, o Djing, o B-boyng e o Graffiti Writing, termos americanos equivalentes à atuação de Djs, MCs, danças de rua e grafite. Algumas frentes do movimento ainda defendem um quinto elemento: o conhecimento. Outras vertentes também acabam mesclando e somando referências como o skate e o basquete de rua, temas que serão contemplados ao longo das páginas desta reportagem.

- Para mim, a arte/cultura periférica ou de rua é uma forma de dar voz a um povo excluído e uma forma de manter vivas outras formas de expressão. É uma forma de afirmação da vida - defende a estudante de Pedagogia Letícia Prates dos Santos, 23 anos, membro do Coletivo de Resistência Artística Periférica (CO-RAP) e promotora de oficinas de educação, arte e rima.

Letícia parafraseia, com orgulho, Evandro Ouriques, cientista social, pós-doutor em Cultura da Comunicação e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) ao mencionar que "a magnífica cultura hip hop é uma magia onde ninguém esperava que acontecesse nada. Surge do chão, surge daqueles que deveriam estar mortos e deveriam estar mudos, surge uma incontrolável e crescente voz no mundo apontando: eu sou, eu existo, eu tenho referência, eu tenho vontade de viver, eu tenho capacidade de viver, e eu tenho criatividade".

Para o professor, historiador e mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) Romanus Dantas, a cultura de rua tem a ver com as maneiras como os indivíduos e os grupos vivenciam a cidade, os sentidos que eles atribuem ao espaço urbano e no modo como transitam e inventam a vida cotidiana em seus trajetos pelas ruas. Já a arte aparece, neste contexto, de forma mais peculiar:

 - Em um sentido restrito, culturas de rua, no plural, podem ser algo referente a grupos que têm a rua, os espaços públicos, como palco principal de sociabilidade. Já arte de rua se refere a algo mais específico, que compõe a cultura de rua, uma diversidade de práticas e técnicas protagonizadas nas ruas da cidade por sujeitos que, de alguma forma, reivindicam para o produto de suas ações, trabalhos, o status de arte e, para si, o status de artista - explica o professor.

SKATE - LIBERDADE PARA APURAR OS SENTIDOS

Desafiar obstáculos e dropar rampas combinando adrenalina, equilíbrio e uma persistência que ignora joelhos e cotovelos ralados são apenas algumas facetas da prática do skate. Para os mais aficionados, a vida atrelada à "prancha com rodinhas" é uma liberdade para apurar os sentidos: os próprios e os do mundo.

- Skate, para mim, é subversão do espaço e, por que não, do tempo a minha volta. Um corrimão tem um uso para o transeunte comum, porém, para um skatista, tem outros mil, da mesma forma um muro, uma escada, uma rampa de acesso, uma elevação. Skate também é resistência política, pois subverte simbólica e esteticamente o meio urbano - observa o cientista social e vice-presidente da Associação de Skate de Santa Maria, Marcio Dias da Costa, 39 anos.

O skate, que, no Brasil, começou a ser difundido na década de 1960, tem seus primeiros registros em Santa Maria nos anos 1970. Marcio lembra que, à época, havia uma pista na Venâncio Aires, esquina com a Appel. Anos depois, a antiga Rua 24 horas virou endereço, e, hoje, a prática concentra-se no subsolo da construção (abandonada) do Centro de Eventos, no Centro Desportivo Municipal (CDM).

- Aqui no CEU (local na Nova Santa Marta), os guardas já nos olham de cara torta e sempre dizem que esse lugar é mais para projetos. Acham que a gente é marginal, só não dizem na nossa cara. Parece que estão fazendo um favor, que vamos estragar as coisas. Daí, nunca conseguimos andar - disse um jovem skatista de 19 anos, que não quis ser identificado.

Atualmente, há outras três opções públicas que, conforme o vice-presidente da associação, são praticamente incapazes de oferecer condições de prática. Uma na Tancredo Neves, que tem medidas erradas e local precário, a do Centro Desportivo Municipal (CDM) é impossível de usar, e o Centro de Artes e Esportes Unificados (CEU), no Bairro Nova Santa Marta, a qual está em bom estado, mas tem horários restritos de uso.

A realidade é diferente do que acontece em cidades até menores, como em Santa Cruz do Sul, onde as iniciativas pública e privada investem nas estruturas, conforme exemplifica Marcio.

- Aqui, as pistas são defasadas, atrasadas. Os próprios skatistas se unem e constroem os obstáculos (para as manobras). Lá, (no Centro de Eventos) tem pessoas de vários lugares da cidades que se encontram. E o skate nos desperta essa autonomia, a "do faça você mesmo" - acrescenta outro skatista, o artista plástico Polin Moreira, 30 anos.

A Secretaria Municipal de Cultura, Esporte e Lazer, por meio da Superintendência de Comunicação, reconheceu que a pista do CDM necessita de manutenção, mas não anunciou prazos para que isso seja feito. A pasta informou que mantém o diálogo com a Associação de Skate de Santa Maria, com o objetivo de buscar soluções conjuntas para melhorar a infraestrutura, e que há um projeto em tramitação no Instituto de Planejamento (Iplan)para a construção de uma pista de skate no Parque Itaimbé, com recursos de uma emenda parlamentar do deputado Covatti Filho, no valor de R$ 222.857,14.

ESTILO DE VIDA 

Polin concebe skate além de um esporte, mas, um estilo de vida, que foge de um meio de competição e preza pela coletividade, vivência particular e liberdade de criação: 

- É como se fosse uma tela em branco e, quando tu andas cada um pinta do seu jeito. Comecei a andar em 1999 e nunca tinha ido em uma exposição de arte nem sabia que existia museu em Santa Maria. Mas, o skate e o desenho debaixo da tábua, eu ia nas lojas para ver os desenhos dos shapes. Isso levou eu mesmo a desenhar. Graças ao skate, eu conheci outras linguagens de arte: desenho, grafite, música e me direcionou a procurar uma formação superior. Já fiz projeto em escolas, dei aulas. O skate me transformou em uma pessoa melhor.

MANIFESTAÇÃO ARTÍSTICA

O skate, como forma de manifestação artística, performática e esportiva, tem na modalidade street seu representante máximo da cultura de rua. O preço caro das pistas particulares na década de 1970 em São Paulo fez com que muitos jovens fossem até elas, porém, o alto custo frente às pistas particulares era improvisado com obstáculos na rua ou usando a arquitetura a sua volta.

- Em uma perspectiva mais individual, o skate proporciona fuga das pressões diárias. Trabalha a concentração e a criatividade, além dos benefícios físicos. Já em uma perspectiva coletiva, o skate ocupa o jovem, fornece, com valores, éticas e morais positivas, o convívio social, a reeducação e a ressocialização, podendo ser trabalhado junto às mais diversas áreas - explica Marcio.

Arquiteta e presidente da Associação de Skate de Santa Maria, Samantha Michelotti, 27 anos, enfatiza que, para ela, o skate é uma prática urbana mal interpretada, pois representa a arte da subversão, une arte, esporte, lazer, cultura e a possibilidade de se afirmar em meio ao caos urbano e ao próprio preconceito que está diretamente ligado à estigmatização e à desigualdade social. 

- Santa Maria, infelizmente, não permite essa liberdade, o respeito ao esporte e ao que ele representa. O skate permite a flexibilização dos espaços segregados e segregantes e produz novas formas de contorno da cidade, o que é muito interessante. Também propõe a valorização pessoal, pois se autodesafia todo dia para superar a si mesmo, além da união de diferentes coletividades. Em um mundo cada vez mais competitivo, acredito ser um dos poucos esportes que não alimenta a competitividade.

RAP É COMPROMISSO

Atividades como já tradicional a Batalha dos Bombeiros, a Guerrilha da Paz, Hip hop na Pracinha e o Festival de Cultura Periférica de Santa Maria têm todos um origem em comum: o Coletivo de Resistência Artística Periférica (CO-RAP).

MCs, rimadores e difusores da cultura hip hop fazem do CORAP um capítulo consolidado na história da cidade.

Representante do coletivo no projeto da Incubadora Social da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Letícia Prates dos Santos é organizadora das atividades junto ao grupo e responsável pela produção cultural. Ele lembra que, quando criado, em 2009, o coletivo era voltado a pessoas interessadas pela cultura hip hop e que atuavam isoladamente, mas em seguida passou a ter ações fomentar o cenário da arte periférica como agente de transformação social.

- A cultura não é importante apenas para cidade, mas principalmente para pessoas. A Batalha dos Bombeiros é um eventos que ocorre há seis anos no Centro. Estar no Centro é ocupar a cidade demarcando um território. É democratizar a cultura, pois cada vez menos existem espaços para a periferia. O sistema quer que a gente esteja dentro de um local, pagando tal entrada, consumindo a tal cerveja se divertindo de tal maneira. Aqui (na batalha) já não se está satisfeito em só pagar ingresso, se divertir de maneira pré-determinada. Aqui é o ato de produzir mos para nós mesmos e isso é revolucionário - pontua Letícia.

Henrique Heinrich, 32 anos, publicitário e integrante do CO-RAP por cinco anos, enxergou no movimento a possibilidade de os jovens criarem ferramentas para exteriorizarem os dramas que vivenciavam, reduzindo problemas de uma forma lúdica

- Este movimento, para além da arte, é uma manifestação de saúde. Quando um serviço de saúde abriu as portas para que a comunidade pudesse atuar, tive a oportunidade de participar de projetos com o Caps (Centros de Atenção Psicossocial) da Cia do Recomeço e com o Projeto Ítaca (Escola de Redução de Danos), expandimos o olhar do Hip hop - enfatiza Heinrich.

Atualmente, o CO-RAP segue no campo da redução de danos por meio de projeto da UFSM realizado em parceria com a prefeitura de Santa Maria, e com chancela do Ministério da Saúde.

Leticia Quevedo, 20 anos, a MC Leti, encontrou no rap um compromisso social e uma responsabilidade de fortalecer a causa feminista. Ela é integrante do CO-RAP, tem dos CDs gravados e fundadora da Batalha das Mina e da Ousadia:

- Quando o rap começou a ir para as ruas, era um questionamento forte, um estilo musical que batia de frente com o sistema, que trazia o que nós, periféricos sofríamos. Durante muito tempo éramos marginalizados, hoje a gente ouve no rádio, porque é uma arte que foi comercializada, por isso, somos resistência. Na Batalha das Minas e da Ousadia, abrimos espaço para os LGBTs para se sintam à vontade. Nessa, os caras nem participam das rimas.

De acordo Debora Bobsin, pró-reitora de Extensão do departamento de Ciências Administrativas, a Incubadora Social tem a finalidade de articular a execução de projetos concebidos a partir de demandas locais/regionais na perspectiva de sustentabilidade socioambiental, visando a geração de trabalho e renda para grupos em situação de vulnerabilidade social e em processo de organização solidária. O nosso trabalho envolve capacitações e formações de modo a potencializar a autogestão, a autonomia e a sustentabilidade econômica dos grupos incubados:

- O Coletivo de Arte e Resistência Periférica (CORAP) foi um dos selecionados do primeiro Edital, tendo iniciado suas atividades junto à Incubadora Social no segundo semestre de 2017. 

ARTE COMO CATARSE

Foi para desvincular do estigma da pichação e poder externar sua vivência pelas quebradas que ele canalizou a arte na criação de uma marca própria. Denison Canfild, 22 anos, mais conhecido como Délis, fez da Mobzo uma marca independente. Criada em 2017, as estampas das roupas nascem da suas referências da perififeria, da cultura hip hop e da caminhada pelo rap.

A ideia veio de uma oportunidade de emprego que surgiu em 2014 em uma serigrafia. Eu precisava de algo que me representasse. Nada melhor doque o lugar que vivemos. O barraco, que virou a logo da marca pôde representar calamidade ou pobreza. O sonho é um dia transformá-lo em mansão, para mostrar que a gente (da periferia) também pode ter e ser o que quiser - adianta Délis, que não descarta em reformular a logomarca futuramente.

O "laboratório" do artista é a própria casa, situada no Bairro Nova Santa Marta, local que divide com a mãe e costuma receber amigos para outros trabalhos. É que Délis também é beatmaker e produtor, tendo inúmeros trabalhos assinados dentro e fora de Santa Maria.

- Na rua aprendi as coisa certas e as erradas, mas sempre vivi o hip hop bem forte na minha quebrada e no colégio em que estudava. Eu sabia o que era rap desde os 6 anos e fui buscando informações. Em 2012, depois de fazer pichos, formamos um grupo de rap com dois amigos. A partir daí, comecei a ver de outra forma todo esse movimento e deixei a pichação de lado para evitar problemas com a Justiça. Hoje meu trabalho é em casa, com referências da rua.



BASQUETE - PARA ELES, NADA VEM DE BANDEJA



Sendo uma das principais expressões da cultura de rua, a democratização deste esporte atrai participantes também na Boca do Monte. Por aqui, o basquete de rua rola nos bairros e locais como a Praça do General Osório, popular Praça do Mallet. Mas, é no Parque Itaimbé que, há um ano, o time, o South Lizards, constituiu-se e já participa de competições.

- Quem joga aqui, automaticamente, torna-se "cascudo", pois a condição do chão é bizarra, com buracos e pedras. Quando alguém cai, o machucado é certo, e os tênis não duram nada. Parcelamos em cinco vezes, nem dá tempo de pagar e já temos que comprar outro. Como o basquete é um esporte muito psicológico, quem joga, torna-se uma "pessoa fria". Buscando um mascote para inspirar o nome do time, encontramos semelhança com o lagarto, sendo cascudos e frios, por isso, o South Lizards, do inglês, Lagartos do Sul - explica o atleta e estudante de Sistemas de informação Arthur Gabriel Pinto Gonçalves, 23 anos.

Para os esportistas, porém, todo esforço é prejudicado pela falta de espaços públicos adequados para as partidas. Os que existem estão com as medidas fora dos padrões e com os terrenos acidentados.

- A quadra do Itaimbé é praticamente o pátio da prefeitura, não tem nem como eles (governo municipal) não verem o estado em que está. É o único lugar que temos. Nós é que fizemos uma campanha e consertamos as tabelas, cimentamos os buracos do chão - desabafa Arthur Gabriel.

Quem passa pela quadra do parque e olha para cima depara com tênis pendurados. A cena tem sido um ato de protesto dos jogadores pelos calçados danificados (detalhe na foto).

PAIXÃO

Prática urbana que crescia nos guetos norte-americanos nos anos 60, no Brasil, foi preterido pelas populares peladas nos campinhos de futebol. A partir da década de 1990, conquistou simpatizantes.

- Como a maioria dos brasileiros só pensava em futebol, depois fui pro skate, foi com 18 anos que minha paixão pelo basquete começou, comecei a jogar tarde, mas hoje com 23 atingi um nível que talvez se tivesse jogado desde criança não teria atingido, pois força de vontade, dedicação e estudo é tudo. tenho 1,77m uma altura baixa para jogadores de basquete, e mesmo assim consigo alcançar no aro que tem 3.05M - orgulha-se Arthur Gabriel.

 

Cauê Jacques, 34 anos, é entusiasta da cultura de rua. Engajado no universo hip hop, faz raps e encontrou no basquete uma redenção:

- É quase uma religião. E temos muitos exemplos nos nossos ídolos da NBA (Liga Americana de Basquete) que começaram nas ruas da periferia dos Estados Unidos. Aqui, juntam-se famílias, amigos, gente de todas as idades e classes sociais. Eu bebi muito, durante 20 anos, bebi. Faz três que comecei a jogar e dois que parei porque o basquete me salvou - conta.

FICOU NA PROMESSA

Na próxima quinta-feira, completa-se um ano da data em que representantes do South Lizards reuniram-se com prefeito Jorge Pozzobom. Uma foto do encontro foi compartilhada na página do próprio prefeito, (veja ao lado) que também escreveu: "O legal é que, antes de eles me pedirem, o nosso governo já tem um projeto para revitalizar o entorno do Bombril, que contempla as quadras de basquete (...)".

A propósito, após nove anos com as portas fechadas, o Centro de Atividades Múltiplas Garibaldi Poggetti (Bombril) está com as obras de recuperação praticamente concluídas, mas ainda não tem data para reabrir. Ao todo, mais de R$ 400 mil foram investidos na reforma, que se arrasta desde 2014 e foi executada por duas construtoras diferentes.

De acordo com os jogadores, na ocasião, ficou combinado que, em três meses, o Executivo trataria da irregularidade do piso das quadras do Parque Itaimbé. Até o momento, nada foi feito.

Segundo a prefeitura, não há projetos em andamento que contemplem o basquete no momento. Contudo, os interessados podem se inscrever nos editais relacionados às leis de incentivo do município.

POESIA EM RISCOS DE TINTA

Expoente do grafite em Santa Maria e com diversos trabalhos conhecidos em todo país, Antonio José dos Santos Filho, o Braziliano, afirma que o primeiro pensamento para ser uma arte de rua, é prezar pela liberdade de expressão, fazendo algo movido pela própria vontade junto da identificação com a cidade, com o bairro ou com o grupo em que se convive. Para ele, a cultura de arte urbana não depende do público, nem do privado. É algo que acontece. Diz, ainda, que para a arte existir, primeiramente, ela precisa de volume de produção.


O grafite, que teve origem nos anos 1970 em bairros de Nova York, se expandiu nas estações de trens. Por aqui, Braziliano retoma a história do grafite, a qual beira duas décadas de atuação e, por vezes, tem uma representatividade diferente em cada região: 

- A arte urbana começa de forma espontânea e não se tem uma percepção de conceito do que é arte. É muito o lance do fazer, de praticar. O grafite começou nos bairros, pela periferia. Aqui em Santa Maria também. Quando a produção artística estava bem volumosa - e aqui digo toda a expressão -, se espalhou pelas ruas, chegando ao centro, esbarrou na questão da moral da cidade. Claro que aqui vale perguntar, de que cidade falamos, já que em escolas públicas e nas comunidades os trabalhos e a cultura hip hop é diferente, sempre teve muita aceitação e o que rola é sempre uma troca social. 

Ainda que tenha ganhado mais visibilidade nos últimos anos, para Braziliano, a maior carência da cidade é a de agentes culturais que possibilitem uma linguagem para se comunicar com os poderes público e privado, e entendam a percepção de cada artista: 

- Falando em empreendedorismo, ocorre, às vezes, que quando algué m quer investir na linguagem do grafite, comete grandes erros. Falta o discernimento para entender quem é esse artista, de como usufruir. sua arte Por exemplo, se ele tem um trabalho baseado em flores e natureza, e pedem para ele desenhar um carro. 

A propósito, o artista questiona o discernimento de algumas frentes santa-marienses em relação à arte urbana: 

- Muito se fala sobre a "sujeira nos muros", mas essas são as mesmas pessoas que destroem casas históricas do dia para noite, pois o interesse financeiro fica acima de tudo. É uma bobagem quando alguém reclama de um muro pintado, mas não se importa em destruir um casarão histórico. E aí, quem é o verdadeiro destruidor do patrimônio santa-mariense? 

SEM RÓTULOS
Conforme Braziliano não há motivos para não tocar no assunto, por vezes polêmico: a arte que perpassa o grafite e põe em xeque da pichação. 

- Para quem está dentro do grafite, não é um tabu falar em pichação. É algo corriqueiro, que não precisa de rótulo de arte. Está ligada ao questionamento. Não é aleatória. Ela tem uma intenção, uma questão de parecer agressiva e é, mas é simbólica. Inclusive, a pichação é utilizada por grandes marcas. Qualquer loja de departamento de roupas, tem peças que remetam à pichação. E aí, é tranquilo utilizar? - provoca o artista. 

A DIFERENÇA

  • Pichação - Caligrafias em preto-fosco
  • Grafite - Traços, subtraços, letras e imagens com bases de brilho e cores vibrantes
  • Grapicho - É a união das letras da pichação agregada à técnica de cor do grafite

NA LEGISLAÇÃO
Atos de pichação são regulados no Código de Posturas do município. A denominada Lei Antipichação, ou Lei Complementar 99/2015, foi sancionada pelo então prefeito Cezar Schirmer, em julho de 2015. O texto expressa que "pichações da paisagem urbana, sendo consideradas intervenções ou inserções qualquer forma de propaganda, manifestações escritas, mensagens, desenhos, rabiscos, marcas, pichação, ato de vandalismo em muros, fachadas, asfalto, calçadas, ruas, monumentos e edificações em espaço público ou dele visível como atos de poluição e de degradação". As infrações estão sujeitas a multas e reparação do dano.

Segundo o delegado Sandro Meinerz, responsável pela Delegacia Regional de Santa Maria, a Lei de Crimes Ambientais, Lei 9.605/98, no artigo 65, prevê que pichação é todo fato que gera dano e poluição visual em estruturas públicas ou privadas cujo autor poderá sofrer penas de três meses a um ano de detenção, e pode estar sujeito a multas que variam de valor para cada caso. 

- Quem pichar pode ser preso em flagrante e vai responder processo. Não entendo como um ato de protesto ou um ato político colocar iniciais ou outros códigos na parede da casa de alguém ou em imóvel público, pois a pessoa está causando um dano. O que é diferente do grafite, que tem uma intenção de embelezamento e não é crime - diz Meinerz.

UM FENÔMENO COMPLEXO E CONTROVERSO
Artista visual e professora aposentada da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Vani Foletto analisa que uma obra de arte é um objeto elaborado que tem como premissa a originalidade na sua criação. Para ela, a expressão do artista carrega pensamentos e valores da sociedade em que se vive. Neste sentido, o grafite seria a pintura pública que se aproxima da arte, pois possui originalidade na forma, no uso da cor, na sua expressividade lúdica, no conteúdo, e está dialogando com o público em sua dimensão estética. A pichação, por sua vez, é, também uma manifestação social, política, de costumes, de transgressão, e pode ser executada sem a concordância do proprietário, mas contra a lei.

- O artista não faz a obra para encerrá-la em seu ateliê ou em sua casa. Portanto, a arte, como definição, é pública. Muitas vezes, há uma certa dificuldade de diferenciar o que é o grafite e o que é pichação. Ambos têm a cidade como cenário e interferem na maneira de ver seus espaços, tornando-os peculiares. Tanto no grafite, que permite um questionamento mais estético e lúdico, assim como a pichação, que torna mais visível o conflito e as dicotomias do mundo contemporâneo.

Professor, historiador e mestre em ciências sociais pela UFSM, Romanus Dantas defende que fronteira entre as classificações é bastante porosa, ou seja, os praticantes transitam entre elas. Em geral, os grafiteiros, os que pintam de forma autorizada, são ou já foram pichadores em algum momento de suas trajetórias. Para o Estado o que está em jogo é a questão do direito à propriedade; para os praticantes são as questões estéticas e de reconhecimento.

De acordo com Dantas, momentos de aguda criminalização são aqueles em que há alguma operação ou campanha policial-midiática anti-pichação, como as Operações Cidade Limpa (2012) e Rabisco (2013). A partir daí, os pichadores/grafiteiros, tiveram uma postura ambígua em relação à criminalização. Ao mesmo que alguns denunciavam a repressão policial, estar na mira da polícia significava também um fator de orgulho, de status entre o grupo, incentivando à prática. Já a Operação Solvente, de 2017, conseguiu seu objetivo, pois trouxe uma lei que aumentou o valor da multa aplicada a quem for pego pichando e, assim, enfraqueceu significativamente a prática ilegal na cidade.

- Minha interpretação sobre a pichação/grafite diverge das visões policialescas, da "Santa Maria do Bem" versus os vândalos. Também me distancio das interpretações romantizadas, que abraçam de maneira pouco crítica o status de arte e reduzem a pichação/grafite a uma manifestação exclusivamente periférica, dos grupos supostamente "sem voz", que não têm outra maneira de se expressar. Apresento uma visão "mais barulhenta", onde as identidades e as posições são flexíveis e transitórias, ou seja, enquanto fenômeno complexo, reticente - justifica o professor.

PARTICIPARAM DESTA REPORTAGEM

Reportagem: PÂMELA RUBIN MATGE
Fotos e vídeos: RENAN MATTTOS 
Edição de vídeos: RAFAEL GUERRA

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