Reportagem especial

O 1º Natal de um transplantado, de uma idosa em um lar de acolhimento e de uma mãe e sua filha recém adotada

Pâmela Rubin Matge


A simbologia do Natal pode ser particular, seguida ou ignorada. A data remete ao feriado religioso que celebra o nascimento de Cristo, segundo o cristianismo.  

Vigário geral da Paróquia de Santa Maria, padre Ruben Dotto diz que é tempo de reencontrar-se e seguir os ensinamentos do Pai:

- É um novo tempo, quando Deus veio até nós e quando, mais do que nunca, temos que retomar o sentido de Cristo em nossos corações.

Presidente da Liga Espiritualista de Umbanda e Cultos Afro-Brasileiros de Santa Maria, Gallagher Victor Siqueira acrescenta que a época deve ser dedicada à reflexão e aos recomeços:

- Nominamos Cristo como Oxalá, mas em qualquer religião, esse é o momento de renascimento, quando Cristo veio ao mundo para salvação da humanidade. É tempo de recomeço, de estender o olhar às pessoas que passam pela gente.

Em Santa Maria, três pessoas passarão seu primeiro Natal em diferentes circunstâncias. Isabel* espera ver o Papai Noel encher de sorrisos seu maior presente: a pequena Maria*, de 1 ano e dois meses, e que a fez nascer mãe em fevereiro deste ano.

Ainda que a ceia seja em uma cama de hospital, para Joelson, a data chega ressignificada. É que ele teve seu pedido atendido pelo Bom Velhinho com 10 dias de antecedência. No dia 15 de dezembro, passou por um transplante de rim.

Já para Neisa, será só mais uma data, sem expectativas. Talvez ela compartilhe um jantar com familiares, mas depois deve voltar para onde está e atravessar seu primeiro Natal dentro de uma entidade de acolhimento de idosos.

Conheça essas histórias:

CEIA RESSIGNIFICADA


Em 2015, durante o tratamento de uma úlcera gástrica e de seguidas crises de hipertensão, o técnico agrícola Joelson Erico Rodrigues, hoje com 43 anos, deparou com um quadro de insuficiência renal. Ele começou a usar medicamentos para a doença, mas seus rins já estavam comprometidos, com apenas 33% do funcionamento. No último ano, passou a fazer hemodiálise todas as semanas, viajando de Júlio de Castilhos para Santa Maria, e sendo uma, entre as centenas de pessoas da região, que esperavam por um transplante.

Evangélico, disse que sempre manteve a esperança em Deus, na medicina e na própria vida. O que não esperava é que tudo acontecesse tão rápido.

- No início do ano, comecei os testes para o transplante. Fui habilitado no dia 31 de outubro. Orava e pedia a Deus que eu recebesse um presente de Natal e até comentava isso com as meninas da clínica. No último dia 14, às 17h, eu estava na estrada quando minha mulher recebeu a ligação de que eu era compatível e havia um órgão disponível. Foi uma euforia dentro do carro para mim, para minha esposa e para meu filho. No dia 15, às 7h, eu já estava na mesa de cirurgia. Só o que sei é que veio de uma mulher de Porto Alegre, com 38 anos. Nada além disso (a doadora do rim) - conta o técnico agrícola, internado em um leito na unidade de nefrologia, no quarto andar do Hospital Universitário de Santa Maria (Husm).

Segundo ele, daquele momento em diante, o Natal foi ressignificado. Neste ano, espera passar de forma serena, sem extravagâncias e no intuito de apenas celebrar a vida, que há poucos dias, ganhou novo sentido.

- Vai ser meu primeiro Natal com restrição alimentar e no hospital. Diferente daquela comilança da ceia. Talvez minha esposa traga alguma coisinha, um panetone, quem sabe. Mas pouco importa. Eu recebi o melhor dos presentes. Logo estarei em casa e, aí, é recomeço, vida nova - anseia Rodrigues.

  • Qual é a sua maior lembrança de Natal?

De quando eu era criança. Morávamos em Derrubada (localidade de Ivorá) e um senhor, que nem lembro o nome, mas um homem de alma boa, chegava lá e nos dava presentes. Lembro de um caminhãozinho de plástico que ganhei.

  • Se pudesse ter qualquer coisa, que presente de Natal pediria? 

Pedi antecipado e ganhei: um rim.

  • E o que é o Natal para senhor?

Agora, Natal é época de esperança, e o significado mudou totalmente. Antes, era mais uma data comemorativa, de reunir parentes para aquela comilança...

" O MELHOR NATAL DA MINHA VIDA"

Isabel*, 43 anos, tem certeza que está prestes a passar o Natal mais importante da sua vida. Não é mero otimismo ou crença. É pura realidade, ainda que para ela tudo pareça um sonho. Será seu primeiro Natal com a pequena Maria* nos braços.  

Sempre envolvida com as festividades natalinas em família, neste ano, pouco importam a decoração, a comida ou o que quer que seja. A data será dedicada à Maria e aos priminhos.

A propósito, desde que recebeu a ligação de uma assistente social do Fórum, no dia 28 de fevereiro, Isabel tem sido só dedicação. É que, naquele momento, ela se via nascer mãe. Na fila por uma adoção desde outubro de 2014, queria um filho ou uma filha, sem definir raça ou gênero.

- Eu estava em casa e vi uma chamada no celular de um número desconhecido. Não costumo atender, mas atendi. A moça me disse: 'Tu estavas habilitada para adoção. Ainda tens interesse? Tenho uma criança pra ti'. Aí, comecei a gritar e perguntar o que fazer. Meia hora depois, eu estava no Fórum e, um pouco mais tarde, em um lar para conhecê-la. Eu chorava muito e nem acreditava no que estava acontecendo. Quando a peguei no colo, olhei para ela e disse: a mamãe está aqui. Eu sempre estive, só faltava a gente se encontrar - conta Isabel.

Dois dias depois, Maria, à época com 5 meses, já estava em casa. Desde então, tem sido um ano de "primeiras vezes". Juntas, passaram o primeiro Dia das Mães, o primeiro Dia da Criança, o primeiro aniversário e, agora, o primeiro Natal.

- Cada dia é uma descoberta e esse será o melhor Natal da minha vida. Agora temos uma família. Diferente, mas nossa. Digo para Maria que somos uma família de três meninas: eu, ela e a Greta (cachorrinha). E está tudo certo, porque as pessoas são diferentes e é assim que eu quero que ela cresça: tendo empatia e compaixão pelas pessoas. E isso não só na época do Natal, como se fosse caridade. Assim como adoção não é caridade. Não é o que eu preciso ou a ideia de que vamos salvar alguém. Ao contrário, ela me salvou. Quem teve sorte de encontrá-la fui eu. E é como eu aceito e sinto tudo isso que faz ser amor - conta Isabel.

 *Os nomes são fictícios para proteger a identidade de ambas

  • Qual é a sua maior lembrança de Natal?

Da minha vó, mãe da minha mãe. Lembro das comidas que ela fazia e de uma massinha doce caramelizadinha.

  •  Se pudesse ter qualquer coisa, que presente de Natal pediria?

Nada. Só ela (filha). Depois dela, só agradeço.

  • E o que é o Natal para você?

Natal é família, é proximidade, amor, afeto. Agora ainda mais. Tudo ganhou um significado maior.


"...SÓ EXISTE PARA QUEM É CRIANÇA"


"Faz a conta tu, nasci em 26 de fevereiro de 1942."

 Neisa Manjon da Cunha até fica em dúvida se tem 76 ou 78 anos. Segundo ela, além desses esquecimentos serem chatos, a idade já não é relevante e o tempo não volta mais. Há poucos meses no Lar das Vovozinhas, entidade que acolhe idosas em Santa Maria, também evita falar por que chegou lá. O que gosta é de relembrar de uma trajetória repleta de cultura, vida profissional pulsante e de vivências cujos resquícios materializam-se em livros de cabeceira, no interior do quarto 111, sua nova morada. São exemplares de Robert Ludlum, escritor norte-americano de romances de espionagem. É que Neisa morou por quase duas décadas nos Estados Unidos, onde trabalhou no Banco Internacional de Desenvolvimento (BID), depois de ser aprovada em uma seleção.

Natural de Santana do Livramento, filha de mãe carioca e pai gaúcho, chegou a cursar Direito e Administração na antiga "Universidade do Catete", no Rio de Janeiro, mas, segundo ela, não concluiu. Fluente em português, espanhol, inglês e com uma boa base em francês, sua maior alegria era "estar com o pé no avião" Na Europa, Itália e França eram os destinos preferidos.

Às vésperas do Natal, a idosa observa o ambiente todo enfeitado e sentencia, com sarcasmo:

- Para mim não significa nada. É só uma data comercial. Tu me perguntas de Natal, mas eu nem sei onde vou passar. Talvez vá para minha irmã e, no outro, dia volte para cá. Nunca na minha vida imaginei que iria parar em um asilo, lar ou sei lá eu como é que chamam isso. Até me dou bem com todo mundo aqui, mas não é minha casa, né?

   Embora refute uma imagem natalina romanceada, entre uma conversa e outra, Neisa revela suas melhores lembranças da época e traz cristalizados na memória os natais do imaginário infantil:

- Não tenho filhos, mas me divertia com a alegria do meus sobrinhos, que hoje cresceram. Natal só existe para quem é criança. Lá nos Estados Unidos, então, era lindo. Uma imagem de filme: neve branquinha caindo, pinheiros e os pequenos esperando o Papai Noel no dia 25 de dezembro. 

  • Qual é a sua maior lembrança de Natal?

Não tenho uma, em específico. Natal para mim existia quando eu tinha crianças perto, sobrinhos com aquela cara de surpresa e de felicidade na expectativa do Papai Noel e abrindo os presentes

  • Se pudesse ter qualquer coisa, que presente de Natal pediria?

Nada, não gosto dessa coisa de presente. Eu gostava era de presentear as crianças. Sem criança, não tem graça. Quem sabe vou me fazer um corte e uma pintura no cabelo. Pensando em fazer uma mechas...

  • E o que é o Natal para a senhora?

Nada demais. Uma data comercial.

REPORTAGEM - Pâmela Rubin Matge

FOTOS - Renan Mattos

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