RS é o Estado com maior proporção de praticantes de religiões de matriz africana, aponta Censo

Colaborou: Letícia Klusener

O Rio Grande do Sul configura como o Estado brasileiro com maior proporção de praticantes de religiões de matriz africana, o que equivale a 306.493, com percentual de 3,19%. Os dados são do Censo Demográfico 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 

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Mesmo com o número representativo, os praticantes das religiões de matriz africana apontam desinformação envolvendo seus ritos, que culmina frequentemente em racismo religioso. 

Àṣẹ Iyá Omin Orunn

Há 22 anos, Silvia Leme veio de São Paulo capital para Santa Maria. Ela é cabeleireira de profissão, aqui consolidou sua caminhada como mãe e é referência em um terreiro de matriz africana. Hoje, além de guiar os rituais religiosos, ela conduz projetos sociais que acolhem famílias, jovens e crianças da comunidade. Passados todos esses anos, hoje já se sente adaptada ao município, menos ao frio daqui. 

— No início eu chorava, quando tinha que levantar da cama no inverno. Mas até que hoje não é mais o caso. O que Santa Maria me proporcionou foi a educação dos meus três filhos. A tranquilidade que eu tenho com eles aqui – comenta ela. 

Para chegar ao terreiro de Silvia, a casa Àṣẹ Iyá Omin Orunn, no Bairro João Goulart, é preciso um convite. O espaço é mais reservado, sem placas de identificação e sem divulgações em redes sociais para entrada. As atividades funcionam a cada 15 dias, por conta dos compromissos dos envolvidos, com trabalho, vida doméstica e estudo: 

– O candomblé é cuidado. Nós trabalhamos com a circularidade. O culto de candomblé trabalha com a questão da comunidade. Temos justamente a preocupação com o outro. Não posso estar bem, se meu irmão não está bem também. Temos esse cuidado, esse olhar. As pessoas procuram um espaço religioso quando passa por alguma dificuldade, outras têm esse chamado internamente. 

Silvia conta que muitos praticantes estão com ela há mais de 20 anos. O trabalho dela também é focado na reeducação, no zelar com a comunidade

– Muitos vem de um histórico familiar muito delicado. Eu acabo me tornando uma mãe, a tia, a família. Sou o incentivo e o encaminhamento, trabalhar o retorno ao estudo, buscar uma profissão melhor. Eu digo que o candomblé é cuidado. É zelar por aqueles que estão próximos da gente. Quando elas conhecem o culto, sentem um certo preenchimento – conta. 

Apesar da comunidade ser de muitas pessoas antigas, Silvia relata que novas pessoas também chegam a partir das indicações. O trabalho na casa é de conexão com a rotina também

– Temos a universidade, que também acaba atraindo muito a juventude. Isso acaba conectando o terreiro com muitos jovens de outras cidades, que muitas vezes não tem família aqui perto. E aí no final de semana, eles vêm almoçar no terreiro. Nem todos novos são filhos, acabam apenas se tornando simpatizantes do espaço. 

Foto: Vinicius Becker (Diário)

Caminhos

Para Silvia, a espiritualidade é, muitas vezes, o que impede pessoas em sofrimento de perderem a esperança. Ela cita o acolhimento de jovens em crise, com casos de sofrimento mental e emocional.

– A fé não é palpável. Eu não posso segurar Oxum nas mãos, mas posso conversar com ela à beira de uma cachoeira. É nesse vínculo que muitos encontram um sentido de vida. As coisas vão acontecendo na vida das pessoas. Trabalhamos essa fé, cuidado, fazer com que a pessoa confie em você plenamente. A gente não dita escolhas, mas aponta caminhos – relata. 

Racismo religioso

Apesar da ampla presença das religiões de matriz africana no Rio Grande do Sul, Silvia ressalta que o preconceito não diminuiu. Pelo contrário, se mantém presente:

– As pessoas falam do que não conhecem. Reproduzem falas de terceiros sem nunca terem entrado em um terreiro, sem saber o que acontece ali dentro. Não somos culto do demônio, como algumas pessoas comentam. Exu não é o diabo. Nosso culto é ancestralidade, é preservação da natureza, é comunidade – explica.

Ela também comenta sobre o sincretismo religioso, fenômeno que mistura elementos de diferentes tradições religiosas a uma crença: 

– Esse apagamento da história do povo preto reforça preconceitos e dificulta a desconstrução do racismo religioso. O culto é oralidade, mas tem uma parte que falta. Ogum não é São Jorge, Iansã não é Santa Bárbara. Além disso, há outra lógica: casas lideradas por pessoas brancas. Quando surge a umbanda no Brasil, a elite branca era proibida de entrar pelas pessoas pretas. E, aí, se muda a lógica. Começa a ter uma mistura de comércio, uma fé vendida. É complexo. 

Preservação da natureza e combate a estigmas

Entre os equívocos mais recorrentes sobre o candomblé, Silvia aponta boatos que relacionam a religião a sacrifícios humanos ou destruição ambiental. Ela rebate com firmeza:

– Tudo que vem da natureza retorna à natureza. Aqui não é permitido deixar garrafas, plásticos ou papelão em oferendas. Só entregamos aquilo que a terra pode absorver. Nada é jogado fora, não compactuamos com o desperdício. Temos respeito e cuidado com a natureza. Quando encontramos despachos de outros lugares, que deixam esses objetos, nós recolhemos. É da nossa cultura manter tudo na natureza. 

Pesquisa

A bacharela em Direito, que se especializa em Direitos Humanos, Mariana Furtado, analisou o racismo religioso a partir de dados nacionais, que à época ainda não haviam sido atualizados. A pesquisa foi motivada pela relevância da temática, mas também por uma experiência pessoal: naquele mesmo ano, o terreiro que frequentava foi alvo de ataques, com pneus de frequentadores furados para desestimular a participação nas celebrações: 

–Também em 2023 foi sancionada a Lei 14.532, que tipificou o crime de racismo religioso. Ou seja, era um assunto bastante atual e urgente – recorda.

Segundo a pesquisadora, o preconceito contra religiões afro-brasileiras remonta à colonização, quando práticas indígenas e africanas foram reprimidas pela Igreja Católica. Mais recentemente, ataques têm sido estimulados por discursos neopentecostais.

– Em programas de TV e em cultos, já vimos lideranças religiosas atacarem diretamente as religiões afro, associando entidades como Exu e Pomba Gira ao mal. Isso cria uma imagem negativa e legitima a violência – explica Marina.

Ela lembra ainda que rituais com animais são frequentemente alvo de desinformação

– Muitos não sabem que toda a carne utilizada nos rituais é destinada às refeições comunitárias. O problema é que, por ignorância, esses costumes são alvo de ataques – completa.

Avanço legal e muitos desafios

Com a Lei 14.532/2023, a responsabilização judicial dos agressores tornou-se mais acessível. Agora, é possível junto ao Ministério Público conduzir as ações, sem que a vítima precise arcar com custos ou advogado. Para Marina, a medida foi um avanço, mas ainda insuficiente.

– É preciso investir em educação, o que seria importante, que também já é lei, é ensinar essa história das religiões nas escolas, deveria ser mais evidente. Entendemos também que é um problema social, que as pessoas adotam discursos que são repassados com desinformação – concluí. 

Foto: Arquivo pessoal

Religiões em números

Os dados foram retirados do portal Cidades do IBGE. No quadro abaixo estão representados os números de Santa Maria, RS e Brasil. As amostras são pessoas de 10 anos ou mais, com o percentual que ele representa (veja o quadro). 

Religiões
Santa Maria
Rio Grande do Sul
Brasil
Católica apostólica romana
136.416 pessoas – 56,49%
5.824.141 pessoas – 60,63%
100.216.153 pessoas – 56,75%
Evangélicas
43.657 pessoas – 18,08%
2.051.481 pessoas – 21,35%
47.418.024 pessoas – 26,85%
Espírita
13.982 – 5,79%
274.787 – 2,86%
3.257.455 pessoas – 1,84%
Umbanda e candomblé
10.249 pessoas – 4,24%
306.493 pessoas – 3,19%
1.849.824 pessoas – 1,05%
Tradições indígenas
56 pessoas – 0,02%
3.221 pessoas – 0,03%
99.425 pessoas – 0,06%
Outras religiosidades
8.870 pessoas – 3,67%
292.223 pessoas – 3,04%
7.079.101 pessoas – 4,01%
Sem religião
28.085 pessoas – 11,63%
847.293 pessoas – 8,82%
16.385.342 pessoas – 9,28%
Não sabe
116 pessoas – 0,05%
3.523 pessoas – 0,04%
95.355 pessoas – 0,05%
Sem declaração
36 pessoas – 0,01%
3.620 pessoas – 0,04%​
199.472 pessoas – 0,11%

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