Há um tipo muito específico de silêncio que se instala nos dias que antecedem um julgamento no Tribunal do Júri. Não é o silêncio do medo, nem da hesitação. É o silêncio de quem está em vigília. Um estado de atenção profunda, como se a alma se recolhesse para se preparar. O defensor entra em outro tempo, em outra frequência. Respira diferente. Vive diferente. É o que chamamos de “Estado de Júri”.
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Um rio que corre sem pressa
Nesse estado, o tempo se alonga. Cada gesto parece mais lento, cada decisão mais ponderada. Não há mais espaço para distrações. O defensor acorda em plenário, onde dormira na noite anterior, ainda que o julgamento esteja a dias de distância. É como se o tempo ficasse suspenso, e tudo fosse apenas uma preparação ritual para o momento porvir. O corpo se move; a consciência é quem conduz. Um rio que corre, sereno e inevitável, em direção ao destino.
Peso sem peso: a gravidade da missão
Não é ansiedade. Não é angústia. É gravidade. O defensor sabe que está prestes a colocar sua palavra entre a liberdade e a condenação, entre a biografia e o estigma. Cada escolha pode ecoar por décadas na vida de alguém. É um peso imenso, mas que se carrega com leveza – como um sacerdote carrega sua fé. A responsabilidade não paralisa; orienta. E essa orientação se traduz em cuidado: com as palavras, com os detalhes, com o outro.
Estado de presença: hic et nun
No “Estado de Júri”, tudo se volta para o presente. O defensor abandona o ruído exterior e mergulha em si. É uma forma peculiar de mindfulness, em que corpo, mente e propósito se alinham. Não há margem para improvisos inconsequentes, tampouco para o excesso de cálculo. Há escuta. Há entrega. Há uma presença radical. É como se o tempo dissesse: “aqui e agora”.
O dever como norte: servir à justiça, servir ao outro
Esse estado também é ético. Não se trata de vaidade ou performance: trata-se de dever. O defensor não está ali por si mesmo, mas por quem lhe confiou o que tem de mais valioso: sua história, sua liberdade, sua dignidade. O Júri é o palco de uma justiça popular, mas, acima de tudo, é o lugar onde o defensor se torna servidor. E servir é um verbo que se conjuga com humildade, estudo, coragem e entrega.
A arquitetura da palavra: do silêncio ao verbo
Nos dias que antecedem o Júri, o defensor elabora silenciosamente sua arquitetura. Cada argumento é pensado como uma viga de sustentação. Cada frase, um degrau em direção à compreensão. Não se trata de convencer, mas de revelar. De tocar. De alcançar. A palavra nasce do silêncio – e a ele retorna, transformada. E é nesse silêncio fecundo que o defensor se prepara: como quem afia uma lâmina no escuro, sem pressa.
Flow: a entrega sem distração
É curioso: ao mesmo tempo em que tudo se torna mais pesado, tudo também flui melhor. O defensor entra em um estado de flow. Experiência quase (quase?) mística, em que mente e ação se tornam uma só coisa. A lucidez se intensifica. As conexões mentais se aceleram. Desaceleram. Aceleram. Há beleza no paradoxo. A preparação deixa de ser apenas técnica: torna-se arte. O Júri exige razão e emoção, lógica e intuição. É o Direito em seu estado mais humano. É a vida acontecendo.
O Júri como começo, fim e meio
O defensor que entra no plenário no dia marcado já está em Júri há dias. Já viveu e reviveu cada possibilidade, já dialogou consigo mesmo e com o caso, já sentiu na pele o que está por vir. O plenário apenas concretiza o que já começou antes: uma travessia interior, ética e estética, em direção ao outro. E, como toda travessia verdadeira, transforma quem a faz. Não se sai o mesmo de um julgamento. E talvez essa seja a mais profunda lição do Estado de Júri: não é só sobre resultado – é sobre ser digno do ofício. É sobre amor à arte.